O Produto

O texto abaixo foi escrito por mim em 1997. Na época foi uma espécie de desabafo de revolta pela forma com que o músico baiano era visto pelo empresário. Sei que os Al Capones da música baiana ainda estão por aí a produzir coisas como os “Reinos do Arrocha” da vida e a alimentar certos radialistas obesos com a famosa carne de sertão. Só que hoje penso um tanto diferente. As coisas estão um tanto diferentes. E o melhor é que eles, os referidos Al Capones, já não são mais os mesmos. Já não têm mais o mesmo dinheiro e o mesmo poder. O citado no texto, por exemplo, que alavancou artistas que têm hoje renome internacional, e levou um merecido pé na bunda de todos eles, atualmente está numa situação muito diferente… Acredito sinceramente que o futuro será melhor.


Este e-mail foi recebido por um dos mais conceituados empresários musicais da cidade. Resolvi trazê-lo ao conhecimento de vocês, colegas da Pracatum, porque ele ilustra muito bem o meu pensamento sobre a atual situação de boa parte dos músicos que trabalham na dita música baiana e de todo o processo não musical que a envolve. Todos os nomes citados foram trocados por fictícios por razões óbvias.

Date: Wed, 14 May 1997 16:48:17 +0100
From: Azulão Produções Artísticas
Reply-To: azulao@falcatrua.com.br
To: eufigenio@falcatrua.com.br
CC: azulao@falcatrua.com.br
Subject: “O Produto”

Tomamos a liberdade, de passar este E-MAIL pra você, porque queremos lhe oferecer um otimo produto que foi considerada como a grande revelação da miconquista/97, e que está sem oportunidade de mostrar seu trabalho por falta de um bom produtor, seu nome? CENIRA CIRCENSE. bem, você há de perguntar, porque eu? porque conhece como ninguem um otimo produto, e que vai ser bem aceito no mercado depois de passar por seu crivo. Também porque temos procurado com muita cautela entregar este produto para ser trabalhado, mas sempre alguem diz leve para o eufigenio pois este produto é do tipo que ele gosta de trabalhar. bem, caso haja de sua parte interesse em conhecer somente conhecer sem compromisso, fico no aguardo de uma resposta sua, para poder mandar materias tais como fita de audio, video e book, ou até mesmo o produto. gratos pelo menos por ter lido, pois sabemos que seu tempo é precioso um grande abraço e muito sucesso em suas jornadas.

Azulão Produções Artísticas

Estamos diante da seguinte situação: um negociante A afirma ter um “ótimo produto” e está a oferece-lo a outro, o negociante B. O negociante A se coloca de forma muito humilde diante da situação de “incomodar” o negociante B e se desdobra em elogios chegando ao ponto de agradecer pelo simples fato do negociante B ler a mensagem eletrônica, dada a preciosidade do seu tempo. O negociante A se refere sempre à artista como um “produto” e coloca à inteira disposição do negociante B para avaliação, fitas de audio, vídeos, book e até mesmo o próprio “produto”. Ainda afirma a certeza do sucesso do “produto” depois de passado pelo crivo do negociante B.
Uma primeira leitura, mesmo que superficial, evidencia dois fatos:

· O negociante A tem uma espécie de reverência com o negociante B, “enchendo-se de dedos” ao dirigir-se a ele e tratando-o com muito respeito e até um certo temor.
· O profundo desrespeito do negociante A à artista, um ser humano a quem ele reduz a “produto”.

Acho essencial que qualquer pesquisador que se debruce sobre o estudo dessa música feita na Bahia e que impregna as rádios e as casas de espetáculos e mobiliza anualmente milhares de pessoas e milhões de dólares em todo país e até fora dele, seja o seu enfoque musical ou social, esteja ciente dessa situação. Vou além quando penso que qualquer pessoa que trabalhe com música nesta terra tem a obrigação de ser sabedora desse fato. Afinal de contas, o nosso foco de trabalho ou de estudo é a música produzida por essa artista a quem denominam “produto”. Como mantenho freqüentes contatos com algumas pessoas desse meio e estando sempre atento aos detalhes e especificidades dele, posso garantir-lhes que esta é a situação da maioria dos artistas que trabalham atualmente nesse tipo de música, sem poupar inclusive os mais famosos.
Estamos numa terra onde cada vez mais, a musica é medida pela quantidade de dinheiro que ela pode gerar, onde somos obrigados a assimilar “sucessos” através da mídia em geral e esta por sua vez, fabrica estes “sucessos” a partir de quem lhe pagou maiores “jabás”; onde o artista, numa parte substancial dos casos, não passa de um simples empregado que recebe ordens de o que gravar, o que vestir, o que falar, o que comer e sabe-se lá mais o que de quem realmente fica com o dinheiro: o empresário.
O caso dos artistas mais conhecidos do grande público e que fazem mais shows, vendem mais discos e por conseguinte dão mais lucro, é bem melhor: ganham muito mais e até têm uma relação de trabalho mais digna. Mas, ai de qualquer um deles que não se submeta à maratona de 25 ou mais shows por mês, recheada de incontáveis entrevistas e compromissos sociais nas cidades por onde passam. Coitado de alguém que não queira cantar aquela música que a filha do prefeito ou deputado que contratou o show adora. Tenho pena da cantora ou dançarina que não queira, por princípios ou por qualquer outra razão, colocar aquele minúsculo shortinho e dançar de forma insinuante durante a apresentação. E se esta mesma cantora ou dançarina se irritar com o avanço sem escrúpulos do filho do contratante ou até do próprio, está frita. E o pior de tudo é que com suas roupas caras e seus carros importados, esses artistas dão a falsa impressão de estarem milionários e ajudam a deturpar mais ainda a situação.
Na sexta-feira passada, (06/06/97), tivemos a satisfação de contar com a sabedoria de Conceição Perrone enriquecendo o nosso conhecimento com a história da música no Brasil. Para mim em especial foi muito bom pois tive a oportunidade de questionar conceitos já cristalizados e me tornar conhecedor de muitos fatos dos quais não sabia. Depois tivemos a oportunidade de ouvir várias músicas de vários momentos históricos e de enveredarmos por uma gostosa discussão em torno da evolução da música brasileira no período enfocado. O nosso Bernard, como bom observador e alemão que é, quis saber como uma música rica como a nossa, com tantos elementos interessantes evidenciados pelas audições propostas por Perrone, poderia se transformar nos “pagodes e axés” da vida, de qualidade tão questionável? Talvez o e-mail reproduzido neste texto ajude-o a encontrar a ponta do icebergue que é a resposta. O que vocês acham?

Luciano Carôso, 8 de junho de 1997

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